A ruptura necessária para outra economia
Pela definição original, economia verde é a que pode gerar um simultâneo triplo
dividendo: melhoria do bem-estar e redução das desigualdades sem aumento da
pegada ecológica. Foi com essa enxuta fórmula que, há mais de dois anos, o
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) propôs o tema que
acabou se transformando na principal controvérsia da Rio+20.
O processo preparatório, em que se engalfinham há sete meses os heterogêneos blocos
geopolíticos das 193 nações, resultou em completo desmanche da noção inicial. O
documento “O Futuro que queremos”, na versão de 80 páginas que foi submetida à
terceira rodada, consolidou censura à ideia de igualdade social, substituída pelo mantra
da mais irrestrita fé no crescimento econômico. Foi assim que dobrou a lista de virtudes
da economia verde, apesar do desaparecimento da redução das desigualdades. Agora ela
tem meia dúzia de benefícios, na seguinte ordem: erradicação da pobreza, crescimento
econômico, inclusão social, bem-estar, emprego, trabalho decente e – antes tarde do que
nunca – funcionamento saudável dos ecossistemas.
O mais irônico é que esse tiro acabou por sair pela culatra justamente dos que mais
trabalharam pelo desmanche. A oposição política ao slogan proposto em 2010 pelo
Pnuma se concentrou em apresentar a economia verde como a mais sofisticada das
maldades conspirativas do Norte contra a prosperidade do Sul. Num quixotismo que
enxerga no qualificativo “verde” quatro moinhos de vento. Ele marginalizaria objetivos
sociais, diminuindo a importância e a urgência do direito ao desenvolvimento; induziria
discriminação a importações provenientes do Sul; favoreceria indesejáveis
condicionalidades nos arranjos de assistência ao desenvolvimento; e, como qualquer
outra abordagem unívoca, faria com que os dois mundos fossem avaliados com uma
mesma régua, contrariando o princípio de responsabilidades comuns, mas diferenciadas.
Marcados por essa retórica de vira-lata, os entendimentos sobre a declaração da cúpula
mundial de 2012 sobre desenvolvimento sustentável nem abrem uma brecha para a
discussão da crítica inversa. Aquela que, em vez de rejeitar a proposta original do
Pnuma sobre a economia verde, considera-a necessária, mas não suficiente para tornar
sustentável o desenvolvimento. Daí a imensa importância de tão oportuno livro, no qual
o conhecimento acumulado desde os anos 1960 pela economia ecológica foi
enriquecido com resultados de pesquisas de fronteira em vários outros campos do saber
científico e filosófico. O bem-vindo décimo livro de Ricardo Abramovay conduz o
leitor a reflexões que não poderiam ser mais estratégicas para o ideal da
sustentabilidade.
Com o imenso risco inerente à pretensão de se fazer resumos, as cinco proposições que
convidam o leitor a enxergar muito além da economia verde são as seguintes:
1. A civilização contemporânea vive a explosiva combinação de rápida evolução
tecnológica e lenta evolução ético-social. Mesmo assim, nunca foram tão promissoras as
oportunidades para a emergência de um sistema econômico em que a partilha, a
cooperação e a distribuição dos recursos se coloque a serviço do desenvolvimento
sustentável. Muito além de uma “economia verde”, essa “nova economia” tende a ser
um processo de dupla reunificação: da ética com a economia e da sociedade com a
natureza.
2. A economia da informação em rede favorece as formas de ação coletiva que não se
baseiam nem no sistema de preços nem nas práticas típicas das firmas ou dos grupos de
firmas. Está surgindo uma nova esfera pública, que não se confunde com o mercado
nem com as hierarquias organizacionais públicas e privadas. A sociedade da informação
em rede resulta de revolução científica em que convergem comportamentos humanos
cooperativos e formas inéditas de organização do Estado, dos negócios e da vida
associativa.
3. O crescimento como condutor perene da vida econômica é incompatível com a
preservação e regeneração dos serviços ecossistêmicos dos quais dependem as
sociedades humanas. São imprescindíveis padrões de consumo que simultaneamente
reduzam as imensas desigualdades sociais (nacionais e globais) e aumentem a
ecoeficiência.
4. Para que o crescimento não seja a razão de ser da vida econômica e se submeta ao
objetivo de ampliar as liberdades humanas dentro das fronteiras ecológicas globais,
políticas públicas serão essenciais, mas insuficientes. Os mercados precisam deixar de
ser vistos como domínio da vida privada, como se a esfera pública fosse exclusividade
do Estado e da sociedade civil. Torna-se indispensável que se aprofundem as pressões
sociais sobre as cadeias de valor geridas pelas empresas.
5. Nada pode ser mais urgente, portanto, do que uma mudança radical da organização da
vida econômica que faça com que os interesses privados sejam orientados para a
obtenção de um bem-estar que não decorre dos tradicionais benefícios proporcionados
pelo crescimento do produto: aumentos de riqueza material, de empregos, de impostos e
de inovações.
É inevitável que tal síntese cause a sensação de se estar diante de profecias tiradas de
interpretações idealizadas de algumas tendências pouco relevantes e até periféricas. Para
usar o arguto aforismo de Romain Rolland, uma sensação de que o autor estaria
sacrificando demais o imprescindível ceticismo da razão em favor do não menos
louvável otimismo da vontade. Em suma: que esse descompasso teria produzido um
livro utópico.
Ora, nada pode ser mais utópico do que contar com a possibilidade de que o mundo
continue em seu atual transe, sem que nenhuma ruptura venha a perturbar a pachorrenta
marcha das mudanças exclusivamente incrementais. Além disso, fora da vulgaridade
cotidiana, o significado da palavra utopia não poderia ser mais positivo, pois se refere
justamente ao integrado conjunto de ideais sobre o qual a sociedade tem a chance de
alicerçar sua esperança: liberdade, equidade, solidariedade e sustentabilidade.
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Resenha de José Eli da Veiga | Para o Valor, de São Paulo. Disponível
em: http://www.valor.com.br/cultura/2691664/ruptura-necessaria-para-outraeconomia#ixzz1wwJFfEuL
José Eli da Veiga é professor dos programas de pós-graduação do Instituto de
Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e do Instituto de Pesquisas
Ecológicas. (www.zeeli.pro.br)
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